sexta-feira, 26 de setembro de 2008

As criaças e a violência urbana


LETICIA WIERZCHOWSKI
A escalada da violência em Porto Alegre é uma coisa estarrecedora. É preciso sentar as crianças numa cadeira e ensiná-las a agir no caso do infeliz encontro com um assaltante. É preciso educá-las no mundo das possibilidades e, pior do que tudo, é preciso plantar nelas a semente do medo. Não fale, não chore, obedeça. É preciso dizer isso a crianças de seis, sete anos, porque elas andam nos bancos traseiros dos automóveis nessas ruas inseguras de Porto Alegre. E é tão triste, é uma afronta à infância – assim como o são os muros altos e as cercas elétricas que se multiplicam por todos os lados. Quando eu era menina, nada disso havia. Ninguém falava em violência urbana e, às vezes, cúmulo dos cúmulos, um par de calças ou um casaco sumia do varal lá de casa. Talvez por isso eu tenha guardado na memória um pequeno episódio. Certa vez, bateram à nossa porta duas menininhas; à minha mãe, que as recebeu, elas pediram para usar o banheiro. Naquele tempo, parecia natural receber crianças estranhas que estivessem apuradas para fazer xixi, e minha mãe levou-as até o lavabo (cujo uso, deturpado pelas funções do dia-a-dia, incluía o penteado diário dos cabelos das meninas da casa). Nesse banheiro, minha mãe guardava uma caixa com elásticos de cabelo e presilhas, e qual não foi nosso espanto ao descobrir, após a partida das duas garotas, que todo nosso manancial de presilhas havia sido surrupiado. Naquele dia, fui à escola de cabelos soltos, impressionada com a verdade do mundo. Nem imaginava que, trinta anos mais tarde, nessa mesma Porto Alegre, eu teria que confrontar meu próprio filho com verdades infinitamente mais duras.-->
As crianças e a violência urbana
Uma das minhas melhores amigas mora nos EUA. De visita, dia desses, ela me disse que tinha vontade de voltar pra cá e criar o filho no Brasil. Não vem por um único motivo: tem medo da violência. Minha cunhada e minha sobrinha adolescente foram assaltadas na porta de casa ainda ontem por três sujeitos armados. Minha amiga tem razão: se eu fosse embora daqui pro meu refúgio idílico, o Uruguai, a violência urbana seria o trampolim da minha partida. Nos dias de hoje, qual mãe não tem medo de sair de carro com as crianças no banco de trás? Há poucos anos, nos gabávamos de viver numa cidade calma e relativamente segura, mas a coisa mudou. Quando menina, eu sempre fui e voltei da escola a pé com as minhas irmãs, e não recordo qualquer sombra de apreensão na figura materna, quando ela se despedia das filhas no portão de casa.A escalada da violência em Porto Alegre é uma coisa estarrecedora. É preciso sentar as crianças numa cadeira e ensiná-las a agir no caso do infeliz encontro com um assaltante. É preciso educá-las no mundo das possibilidades e, pior do que tudo, é preciso plantar nelas a semente do medo. Não fale, não chore, obedeça. É preciso dizer isso a crianças de seis, sete anos, porque elas andam nos bancos traseiros dos automóveis nessas ruas inseguras de Porto Alegre. E é tão triste, é uma afronta à infância – assim como o são os muros altos e as cercas elétricas que se multiplicam por todos os lados. Quando eu era menina, nada disso havia. Ninguém falava em violência urbana e, às vezes, cúmulo dos cúmulos, um par de calças ou um casaco sumia do varal lá de casa. Talvez por isso eu tenha guardado na memória um pequeno episódio. Certa vez, bateram à nossa porta duas menininhas; à minha mãe, que as recebeu, elas pediram para usar o banheiro. Naquele tempo, parecia natural receber crianças estranhas que estivessem apuradas para fazer xixi, e minha mãe levou-as até o lavabo (cujo uso, deturpado pelas funções do dia-a-dia, incluía o penteado diário dos cabelos das meninas da casa). Nesse banheiro, minha mãe guardava uma caixa com elásticos de cabelo e presilhas, e qual não foi nosso espanto ao descobrir, após a partida das duas garotas, que todo nosso manancial de presilhas havia sido surrupiado. Naquele dia, fui à escola de cabelos soltos, impressionada com a verdade do mundo. Nem imaginava que, trinta anos mais tarde, nessa mesma Porto Alegre, eu teria que confrontar meu próprio filho com verdades infinitamente mais duras.

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